11.10.06

Manderlay

Dogville foi um filme único. Lançado em 2002, surpreendia tanto pela forma quanto pelo conteúdo. Filmado quase sem cenários, as construções são demarcadas por linhas no chão. Até o cachorro, que latia, era representado por um desenho e a palavra “Dog”. Lembro-me de um crítico, Cláudio Marques, que escreveu o seguinte: “Fico pensando em alguém desavisado que entra em Dogville para ver Nicole Kidman…”

Totalmente atípico, Dogville, em suas 3 horas de duração, abria a trilogia intitulada por Lars von Trier, de “USA - Land of Opportunities”. Tristemente resumindo, o filme contava a história de Grace que, fugindo de gângsteres, encontra a cidadezinha de Dogville, nos Estados Unidos. Ajudado por um de seus habitantes, que encantou-se com ela, Grace oferece pequenos serviços para ser aceita na comunidade. À medida que os habitantes de Dogville percebem o poder que têm sobre ela, a fugitiva vai sendo transformada em escrava.

Dogville abria um leque de possibilidades de interpretação enorme. Ataque aos EUA e sua política internacional, estudo sobre a maldade nata do ser humano, ou até uma fábula inspirada em elementos bíblicos. A segunda parte da trilogia, Manderlay, foi recebida com enorme expectativa. Poderia Lars von Trier criar algo ao menos à altura daquela verdadeira obra-prima do cinema?

Grace, agora interpretada por Bryce Dallas Howard, depois de tirar Dogville do mundo encontra a cidade de Manderlay, e descobre que a escravidão persiste setenta anos após a abolição oficial da escravatura. Quando eliminou Dogville, Grace disse que “Se há alguma cidade sem a qual o mundo poderia ser um lugar melhor, é esta.” Com metade do poder de seu pai (Willem Dafoe, no lugar de James Caan) em mãos, Grace tenta “libertar” os escravos de Manderlay e criar uma democracia ali.

O filme não é nada politicamente correto ao lidar com dois assuntos delicados. A política, ao tratar de democracia e autoritarismo, e de relações “raciais” e escravidão. Grace, com ajuda de seus gângsteres, abole a escravidão e obriga os antigos senhores de Manderlay a trabalharem junto com seus ex-escravos na plantação, em um sistema de cooperação comunitária. À medida que o tempo passa, o idealismo de Grace é posto em cheque, uma vez que os escravos cumpriam suas tarefas sempre motivados por ordens superiores, e nesse novo sistema, aparentemente democrático, tudo deve ser levado a votação.

Lars von Trier não tem medo das palavras. Muitos críticos condenaram o filme por ele não se ater a um ponto de vista coerente por todo o tempo. Antes de ser um defeito, vejo como uma qualidade, uma vez que essa aparente incoerência retrata fielmente a ordem das coisas. Tudo é relativo. O autoritarismo é injusto, sim. Mas não seria melhor estar sujeito à ordem de uma única força superior, do que constantemente estar num jogo de forças com centenas de semelhantes? Essas diferentes idéias, entre outras, são representadas por diferentes personagens, e pelas mudanças de atitude de Grace durante o filme.

Um interessante recurso que von Trier utiliza para mostrar os efeitos da opressão são as sete “categorias psicológicas” dos negros, encontradas no livro intitulado “Lei da Senhora”, que era como que uma constituição aplicada aos escravos, antes da chegada de Grace. A divisão arbitrária criada pela mente doentia da antiga senhora, interpretada por Lauren Bacall, além de ser chave para o desfecho do filme, separa os escravos em grupos que se comportam de forma diferente em relação à liberdade ou a escravidão. Uma dessas categorias, a de “Negro Falante”, tem como representante Wilhelm (Danny Glover) que, junto a Grace, serve como porta-voz dos diferentes modos de concepção da sociedade apresentados em Manderlay.

Quanto as substituições de Nicole Kidman e James Caan, posso dizer que não fazem falta. Bryce Dallas Howard se adequa mais à Grace de Manderlay, não mais tão inocente quanto a Grace do primeiro filme. James Caan era uma figura mais imponente, mas Willem Dafoe consegue substituí-lo, uma vez que no segundo filme, ele é somente um chefe gângster, e não a possível representação de Deus, como alguns o viram no primeiro filme.

O cenário, ou melhor, o palco é maior dessa vez. As “construções”, maiores, são mais elaboradas, como a mansão dos senhores. A luz, tal como em Dogville, tem função narrativa e é muito bem explorada. Nesse filme não temos neve pra compor uma cena tão linda quanto aquela em que Grace arrastava sua corrente pela neve, mas temos uma tempestade de areia que arrasa a cidade.

Comparado a Dogville, o grande “pecado” de Manderlay é particularizar demais, restringindo dessa forma a interpretação do filme ao caráter político, de protesto contra os EUA, quando poderia ser uma análise do ser humano, tal como foi o primeiro filme. Mas, em seu objetivo, Lars von Trier foi extremamente enfático. O final do filme, que não contarei, não se preocupem, já aponta para o terceiro filme, Wasington (sem o H mesmo). Os créditos, como em Dogville, mostram cenas análogas ao filme, no caso fotografias de negros em condições sub-humanas, sendo agredidos, ou da organização racista Ku Klux Klan, e outras surpresas mais “atuais”.

O filme não consegue superar Dogville, tanto pelo choque causado visualmente, quanto pelo caráter universal do primeiro filme. Mas é quase tão formidável quanto o primeiro, e amplia a expectativa para Wasington que, desde o nome, promete ser mais agressivo.

* crítica originalmente publicada em Petshop - a sua ração cultural